Reunião do Grupo de Estudos em Medicina Narrativa – 27/09/2018
Setor de Neuro-Humanidades – Disciplina de Neurologia – EPM-Unifesp
.
Discussão sobre o conto “Lisetta” de Alcântara Machado
1 – Sobre o enredo.
1.A - Discutiu-se sobre “como, na verdade, criança é má”.
A partir de Freud,
começa a haver um questionamento a respeito da ideia de “total inocência da
criança”, como se nascesse com uma tabula
rasa, em termos emocionais; a partir de noção de inconsciente e de conflitos
do ego surgem situações de tendências egocêntricas que comprometem os comportamentos
de relações. Alcântara Machado nos anos 1920 foca essa possibilidade.
1.B – Alcântara Machado, em sua obra “Brás, Bexiga e Barra Funda”,
reúne contos com temática em torno de diferenças sociais, ou ainda sobre conteúdo
existencial da classe trabalhadora, ou da classe pobre dos anos 1920, em São
Paulo, com a presença de imigrantes pobres. Ao mesmo tempo em que têm certo
traço cômico, suas narrativas sempre têm algum aspecto triste e singelo,
marcando diferenças entre classes sociais.
2 – Sobre a construção do texto.
O autor tem
singularidades próprias em sua forma de escrever que lembra os modernistas e
lembra uma linguagem jornalística. Com algumas frases curtas, comunica de forma
mais veemente certas sutilezas que marcam sua narrativa.
2.A - Seguem-se alguns trechos.
“Lisetta começou a namorar o bicho. Pôs o pirulito de abacaxi na boca. Pôs mas não chupou. Olhava o urso. O urso não ligava. Seus olhinhos de vidro não diziam
absolutamente nada. No colo da menina de
pulseira de ouro e meias de seda parecia um urso importante e feliz”.
O autor acentua a troca de atenção da
menina do pirulito para o urso. Os olhos de vidro do urso indicam que ele “não
ligava”. Logo a seguir vem a explicação. O urso parecia importante e feliz por
estar “no colo da menina de pulseira de ouro e meias de seda”. Lisetta passa a
ver no urso a extensão da menina rica.
“A menina rica viu o enlevo e a inveja da Lisetta. E deu de brincar com o
urso. Mexeu -lhe com o toquinho do rabo: e a cabeça do bicho virou para a
esquerda, depois para a direita, olhou para cima, depois para baixo. Lisetta
acompanhava a manobra. Sorrindo fascinada. E com um ardor nos olhos! O pirulito perdeu definitivamente toda a importância”.
Com a frase “O pirulito perdeu
definitivamente toda a importância” o autor resume o encanto de Lisetta com as
peripécias do urso produzidas pela menina rica que percebe o interesse de
Lisetta. Faz uso daquilo que indica a distração infantil de Lisetta: o
pirulito.
“Lisetta sentia um desejo louco de tocar no ursinho. Jeitosamente
procurou alcançá-lo. A menina rica percebeu, encarou a coitada com raiva, fez
uma careta horrível e e
Ao mencionar o custo e o local de
compra do urso acentua-se a diferença entre as meninas. Lisetta quer tocar algo
que para ela é inalcançável.
“A mãe da menina rica não respondeu. Ajeitou o chapeuzinho da filha,
sorriu para o bicho, fez uma carícia na cabeça dele,
abriu a bolsa e olhou o espelho”.
Com esse fim de frase está indicada a
indiferença da mãe da menina do urso, e também seu egocentrismo, olhando para o
espelho, uma imagem narcísica, sem ter respondido.
“O urso lá se fora nos braços da dona. E a dona só de má, antes de entrar
no palacete estilo empreiteiro português, voltou-se e agitou no ar o bichinho.
Para Lisetta ver. E Lisetta viu”.
Aqui o autor expressa de maneira clara
o lado o traço de maldade da dona do urso, que aqui já não se mexe ou se
manifesta, mas passa a ser “da dona”. E acentua-se que Lisetta viu.
Após ter apanhado em casa por seu
comportamento no bonde, Lisetta ganha do irmão mais velho uma espécie de “urso”
improvisado, fruto da criatividade desse irmão, para consolar a menina.
“Lisetta deu um pulo de contente. Pequerrucho. Pequerrucho e de lata. Do
tamanho de um passarinho. Mas urso.
Os irmãos chegaram -se para admirar. O Pasqualino quis logo pegar no
bichinho. Quis mesmo tomá-lo à força”.
A frase “Mas urso” tem uma força
especial neste ponto da narrativa. Como que dá uma solução para um conflito, um
desejo, uma instabilidade surgida no início do conto.
"Correu para o quarto. Fechou -se por dentro”. Alcântara Machado
brilhantemente fecha essa ‘estória’
com a frase “Fechou-se por dentro”, indicando não apenas que ela se fechou no
quarto, mas também que se fechou dentro de si mesma.
2.B – Outros aspectos.
Lisetta, sua mãe,
Dona Mariana, a família Garbone, Ugo, Pasqualino têm o nome mencionado no
conto. A menina dona do urso e a mãe dela não têm o nome mencionado. São desconhecidas,
distantes.
Apenas Lisetta,
sua mãe e Ugo falam. A menina do urso e sua mãe nada falam. Uma que mexe com o
urso, a outra que faz um agrado na filha e no urso e pega o espelho.
Alcântara Machado
usa a linguagem própria das personagens, escrevendo em italiano quando esse é o
caso da língua de quem fala. Em um conto que não usa de muitas palavras,
consegue retratar todo um contexto através dessa narrativa.